Ceptisémia
afreudite*
A RTP anunciou que o papa morreu na sequência de um "choque cépticémico" ... de um "colapço".
Analisando estes "erros" à luz do discurso do mestre (o léxicamente correcto), os zeladores da pureza da língua, deitariam as mãos à cabeça e debitariam as habituais litanias sobre a deficiência do ensino, a incompetência dos professores, a TV, as playstations , etc.
Analisando a partir de outro discurso, que se situa no "avesso", o analítico, o "erro" fruto da falta de instrução, converte-se em lapso, mesmo que se escreva lapço, como emergência do recalcado ou "invenção" que aparece como testemunho de um sujeito (que é, por natureza, léxicamente, gramaticalmente, políticamente, socialmente, etc, incorrecto).
Embora seja discutível qualificar de lapso (lapsus calami) aquela exibição obscena (para uns) de falta de cultura, demos de barato que se trata de um lapso e elevemos o erro à heresia, sendo re-lapsos, escrevendo ceptisémia.
Obtemos um significante novo, um "neologismo", um aborto de acordo com as normas gramaticais vigentes, mas uma criação que se pode revelar heurística a partir de um outro ângulo (discurso).
Tentemos analisar a morte do papa, um homem dotado aparentemente, de uma fé inabalável, a partir desta perspectiva.
Conhecendo alguns dados da sua biografia (nomeadamente, a perda de toda a família até aos 20 anos) que analisamos noutro lado, não teremos dificuldade em aceitar que o papa recorreu à blindagem da fé para se proteger do que em psicanálise se designa por um "real" inassimilável( algo que escapa à simbolização).
Qualquer outro que fosse submetido às mesmas provações (perda da família, perda da pátria, perseguições) provávelmente, não escaparia a um choque "céptisémico" (cepticismo quanto ao sentido (semia) da vida, quanto à existência de Deus).
Ele preservou-se desse abalo graças ao casulo da fé, mas como sujeito ( e como sujeito, dividido) ele não escapou ao demónio da dúvida, a sua extrema devoção podendo ser sintoma de uma extrema dúvida.
E a dúvida, a angústia mata mais do que geralmente se pensa, disfarçando-se quantas vezes de doenças "somáticas".
Não é que se negue a importância de factores, como a doença de parkinson, a velhice, ou a septicémia. Pretende-se apenas não negligenciar que, frequentemente, uma sépticémia pode ser favorecida por uma "céptisémia".
Aliás, o modelo de Karol W., por muito divino que fosse, também, não escapou, quando confrontado, na cruz, com o desabar das suas ilusões messiânicas, a um ataque de céptisémia. Essa é , pelo menos, uma leitura possível da conhecida queixa : "Pai, pai porque me abandonas ?".
Não terá compreendido Cristo, no estertor da morte que não podia contar com o Pai, que o Céu para o qual virava os olhos, numa súplica derradeira, estava vazio?
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